22 de março de 2024

BARCO A VELA

Estou vendo 
A vida indo 
De vento em popa. 
Ainda há pouco
Vinha ela vindo 
Feito louca. 
Tampouco me seduziu 
Essa vinda 
Assim como não me seduz 
Tal ida. 
E assim 
Vou vivendo a vida 
Conforme o vento 
Assopra.
Tenho minha vela 
Sempre pronta a enfunar 
Sobre as ondas 
Sem que me importe 
Onde o veleiro aporte.

Foto do autor.


1 de março de 2024

TEMPUS FUGIT

Sentado 
Aguardo o tempo 
Enquanto o vento sopra
Sobre o que me resta de cabelo. 
Há muitas esquinas 
Em seu trajeto. 
Tomara que ele se perca 
Se embrenhe por atalhos 
Incertos 
E chegue aqui inerme 
E me permita sorver os goles 
Do meu café amargo 
Com a paciência dos paquidermes.

Pão de Açúcar com nuvem (foto do autor).


14 de janeiro de 2024

OPINIÃO

Sou um otimista
Que vê a vida com pessimismo
Acredito que sobrevivamos
Ao cataclismo
Que nós mesmos inventamos
Com o vandalismo
De milhares de anos
Com que construímos
Com rapacidade
Isso que chamamos
Humanidade.

            Nuvens sobre a baía (foto do autor).

14 de dezembro de 2023

RESSACA

Ouvir com o mar
O rugido das ondas
A quebrarem flácidas 
Sobre as pedras rígidas.
Espumas efêmeras
Na areia.
O sol impõe
No céu seu hálito
Abrasador. 
Na água
Pinguins humanos
Sobre pranchas
A desafiar 
A imprevisibilidade das vagas. 
O Sudoeste
A entrar pela barra
Com vigor. 
E sobe no ar
A maresia anunciando
Que há ressaca. 

Foto do autor.








3 de dezembro de 2023

INSANUS CANIS

No convívio dos vizinhos
Há contendas 
No cessar-fogo anunciado 
Há tiros 
Na trégua pactuada 
Há bombardeios 
Na paz pretendida 
Há guerra 
No planeta desvalido 
Há o bicho humano

Imagem colhida em revistaesquinas.casperlibero.edu.br.


24 de outubro de 2023

NO BARRO PRETO

                        (Dedicado ao primo José Luís Azevedo)


Chovera por aqueles últimos dias, e a pequena baixada do Barro Preto, na estrada que vai da vila ao Jacó, estava cheia d’água, formando um pequeno charco, cuja profundidade subia um pouco além dos tornozelos dos dois meninos.

Eles iam a pé em direção à fazenda onde morava o Zé Luís, um ano mais novo que seu primo, morador da vila. Ao entrarem na curva da estrada, Zé Luís percebeu o coaxar de rãs e chamou a atenção do primo, a quem convidou caçarem algumas delas. Como o primo nunca o fizera, Zé Luís deu as instruções:

- A gente entra devagarinho no brejo, sem movimentar muito a água. Aí observa, nas moitinhas de capim, se tem ajuntamento de bolhas. Aí vai estar a rã respirando. Você estica o braço rápido e segura com força. Vai pegar a rã pelo pescoço.

O primo, embora inexperiente na atividade, captou as orientações perfeitamente.

E lá foram os dois, de mansinho, os pés descalços pisando com cuidado o baixio encharcado ao lado da grande pedra arredondada, que dava a identidade daquela curva da estrada, a meio caminho entre o Jacó e a Rua, nome por que era identificada a vila. Em silêncio e medindo as passadas, mas com gestos rápidos e firmes, os braços, como flechas ligeiras, projetavam-se em direção à coroa de bolhas na pequena touceira de capim e dali tiravam uma gorda rã distraída. Ao cabo de pouco tempo, os dois acumulavam nas mãos uns dois pares daquele bicho carnudo e feioso, que esperneava vigorosamente para se libertar. No entanto os meninos tinham as mãos como torqueses poderosas e mantinham os anfíbios bem presos.

Quando já não conseguiam segurar mais daqueles batráquios escorregadios, gosmentos, de pernas fortes, retomaram o trajeto em direção à fazenda. Se algum passante por eles cruzasse, certamente estranharia aqueles dois meninos, com seus dez-onze anos, a caminharem pela estrada levando quatro rãs pelas mãos.

Duzentos metros à frente, no início da subida da estrada em curva, localizava-se a entrada da propriedade do Lourinho Azevedo, cuja sede se escondia atrás do morro. Um pouco após a porteira de entrada, no morro pelado de vegetação alta, sobrelevava a casa humilde da Neguinha, sitiante do fazendeiro.

Zé Luís teve, então, a ideia de oferecer os bichos à mulher pobre, que tinha filhos pequenos e muitas carências no viver. Ele gritou, antes que transpusessem a porteira:

- Ô, Neguinha! Está em casa?

Neguinha chegou à janela, como a responder com sua figura a pergunta do menino, que logo emendou:

- A gente pegou essas rãs. Você quer para o almoço?

Neguinha abriu um sorriso e respondeu afirmativamente. Naturalmente ela não tinha nenhuma carne para dar às crianças naquele dia.

Os dois meninos subiram até a casinha de pau a pique – cobertura de sapé já envelhecida -, levando as rãs capturadas. Com um sorriso de felicidade estampada no rosto, Neguinha as pegou, colocou numa lata grande e, de imediato, tampou com uma tábua. Todo o cuidado era pouco, para que elas não fugissem.

Zé Luís quis saber do primo se ele já vira a rã pular na panela, depois de morta e esquartejada. Claro que o primo nunca vira aquilo. Assim resolveram esperar Neguinha matar os bichos, tirar-lhes o couro, esquartejá-los, temperá-los com alho, sal, pimenta do reino e uma folha verde que eles não identificaram, mas que parecia alfavaca.

Neguinha pegou sua panela de barro grande, deitou um pouco de gordura de porco e esperou que o fogo principiasse a fazer seu serviço. Assim que percebeu que a quentura estava adequada, começou a colocar com cuidado os pedaços de rãs temperados na panela. Foi então que o primo, pela primeira vez, viu com admiração a carne de rã tremelicando, desesperada como se viva estivesse, ao contato com a gordura quente. E lhe passou pela cabeça o sofrimento das bruxas que eram jogadas em óleo fervente, como nas histórias que ouvia dos mais velhos.

Assim que as rãs se deram por vencidas e cessaram toda a bulha, Zé Luís e o primo se despediram da Neguinha e seguiram caminho até a fazenda, lá onde as brincadeiras davam o tom da vida normal daquelas crianças.


Imagem em pt.wikipedia.org.




2 de agosto de 2023

RELENDO BANDEIRA

Bandeira
Poeta
Como quem conversa
Conversa sem paletó
E gravata
Conversa de pijama
De bermuda cáqui
E camiseta regata
Puída no colarinho
 
Bandeira
Poeta
Como quem fala com o amigo
Durante o cafezinho
Ou ao ver a moça se banhar
Distraidamente
Encantadora
O coração a lhe sair pela boca
 
Bandeira
Poeta
Como se prosa
Sobre aquilo
Que nos interessa
Ou que presta
E mete um bocado de vida
No que se torna poesia.



Caricatura de Manuel Bandeira
por Carlos Drummond de Andrade (colhida na Internet).